Uma frase que já escutei muito é “graduação não é importante” e hoje eu gostaria de colocar algumas reflexões sobre a importância ou não importância da graduação. Então separei o meu pensamento em alguns tópicos:
Qual o propósito histórico da graduação?
Antes do sistema kyû-dan — importado do gô [1] para as artes marciais por Jigorô Kanô, o fundador do judô — boa parte das artes marciais usava um sistema chamado menkyo [2]. O objetivo do sistema menkyo era determinar o grau de compreensão e capacidade de ensino da arte; fundamentalmente, o menkyo era um sistema para avaliar professores e determinar quais praticantes tinham sido considerados aptos pelo soke (o “dono” da tradição) a ensinar determinadas partes do currículo. Isso faz sentido dentro da ideia de que as artes marciais não tinham muita relação com esporte ou recreação, eram tradições (ou transmissões) [3] e a transmissão deveria ser realizada dentro dos padrões esperados pelo líder da tradição.
O sistema kyû-dan introduzido por Kanô ao judô tinha já o claro objetivo de distribuir os alunos em grupos, daí também o surgimento das faixas branca e preta (e posteriormente outras cores). É interessante lembrar que Kanô era professor e uma de suas inovações no campo das artes marciais foi sua introdução nas escolas, com turmas grandes de idades variadas. Distribuir alunos fazia bastante sentido. Da mesma forma, faz sentido nos esportes e competições em geral organizar categorias com base no tempo de experiência e habilidade do competidor, sem dúvidas nisso a graduação ajuda bastante.
Graduação, Ego e Desonestidade
Não é muito difícil imaginar que a ideia de estar “acima” dos outros pode encontrar suporte fácil no fato de a pessoa ser detentora de graduação maior, particularmente se isso envolver alguma espécie de adulação por parte dos seus “inferiores”. A partir daí podemos também pensar na questão financeira — na maioria das artes marciais, ser instrutor é profissão, e para se manter à frente da concorrência é necessário um diferencial (talvez um certificado de alto nível) — o que pode levar, inclusive, ao desonesto mundo da graduação fictícia: os famosos “farsa preta”, inventores de “finjutsus”, donos de “McDojos” etc.
Pensando por este lado, é fácil descartar graduação como algo de importância secundária: quem faz questão de graduação só pode ser mal-caráter ou deseja apenas alimentar o próprio ego com um número que não realmente significa nada. Mas seria só isso? Será que podemos apenas descartar a graduação como algo completamente desnecessário? Eu já pensei assim, mas decidi que estava sendo muito mais arrogante simplesmente descartando a importância da graduação quando tantos outros praticantes (com muito mais tempo e experiência que eu) se esforçavam para buscar seus “números que não realmente significam nada”.
Objetivo Pessoal
Uma função interessante da graduação é ter objetivos de curto, médio e longo prazo. O objetivo de artes marciais como kendô ou iaidô não é claro e prático; ninguém está aprendendo as técnicas para atacar pessoas na rua com espadas ou duelar até a morte (assim espero!), mas para seu próprio aperfeiçoamento pessoal, ou mesmo diversão. Dito isso, é relativamente fácil perder a noção de onde você está e onde quer chegar — se a escada é infinita, existe começo, meio e fim? — e a graduação te dá um pouco dessa noção de objetivo.
Fácil, um 1º dan de kendô tem como objetivo de curto prazo passar para 2º dan no próximo exame de graduação. Para isso ele deve observar o que deve um 2º dan deve ser capaz de demonstrar perante a banca e estudar esses elementos. O mesmo 1º dan tem como objetivo de médio prazo, dentro de alguns anos, passar para 3º dan e poder participar de campeonatos na categoria avançada — talvez ter a oportunidade de lutar contra algum atleta famoso. Seu objetivo mais distante provavelmente quase inatingível é passar para 8º dan; entender o que é chegar no “nível máximo” do kendô.
Isso envolve um pouco de ego? Acredito que sim, mas não de forma prejudicial, mas, sim, honesta e com o sentido de impulsionar o praticante para frente. A vontade de se desafiar e alcançar novos horizontes é baseada na vontade de sair vitorioso, ao passo que as derrotas lhe ensinam perseverança e humildade — será que um 4º dan não pode perder de alguém menos graduado? Tudo isso contribui para o amadurecimento, que não deixa de ser um dos objetivos do kendô (ou do budô, em geral).
Além disso, estar constantemente participando de exames e se colocando à prova lhe dá a oportunidade de saber se está no caminho correto. Para quem não tem a oportunidade de ter um sensei de alto nível acompanhando seu desenvolvimento a cada treino e, pior, acaba por se tornar um referencial para o próprio grupo, talvez seja essencial estar sempre se colocando à prova. É fácil e prejudicial se colocar como líder, estabelecer que sua opinião está correta e simplesmente parar de buscar o crescimento e o escrutínio dos colegas ou dos mais avançados; um rápido caminho para a perda de contato com a realidade.
Para a Organização
Não podemos, também, ignorar um outro sentido prático da coisa: as vantagens para a organização. Uma organização precisa de membros [4] e, sejamos francos, exames de graduação são uma forma de manter os membros ativos, pagando, e integrados, principalmente em artes como o iaidô onde a competição não tem essa força toda. A função da organização, por sua vez, é estruturar a prática, cuidar para que existam eventos, graduações, critérios coerentes estabelecidos e tudo mais que seria impraticável por uma única pessoa ou academia no mundo moderno — estamos falando de kendô, iaidô e jôdô, que não são grandes negócios e em geral não tem fins lucrativos —, não é uma questão de investir milhões em propaganda ou capturar alunos com picaretagem. Os objetivos pessoais alimentam a vontade de se graduar, que alimentam a subsistência das organizações.
Além disso, é importante que os próprios líderes das organizações tenham graduação. Você gostaria de uma federação nacional onde os diretores não possuem graduação? Talvez seja injusto, mas seria difícil atribuir legitimidade a um grupo que não possui certificação. Eu mesmo adoraria que nossos senseis brasileiros atingissem 8º dan, da mesma forma que adoraria que a seleção brasileira de kendô fosse campeã mundial. Seria isso se envaidecer através das conquistas nossos amigos e professores que nos representam? Talvez um pouco, mas, ainda assim, somos honestos em nossa torcida; queremos validar nosso aprendizado perante o mundo por um desejo de saber que estamos fazendo o nosso melhor, não é uma questão de manter aparências.
Quando Deixa de Fazer Sentido?
Minha conclusão é que a graduação deixa de fazer sentido quando você deixa de praticar a sua arte. Simples. Todo o ponto de ser um 8º dan em kendô se baseia da ideia de que você treina/ensina/participa do mundo do kendô. Sua graduação em arte marcial não te torna mais ou menos especial no “mundo real”. Suas habilidades físicas certamente decairão com a falta de treino. Mesmo pensando em artes voltadas para a defesa pessoal, muito mais vale o seu real aprendizado de defesa pessoal que qualquer grau que tenham lhe dado. Da mesma forma que troféus de campeonato apenas servem de recordação quando você para de praticar a modalidade; você não será eternamente campeão, mesmo que tenha vencido mil vezes.
Perde o sentido também, claro, quando utilizada a graduação para fingir-se de algo que você não é. Não faz muito sentido se orgulhar de ter atingido certo nível se isso não foi decorrente de algum esforço, e isso vai além dos “picaretas”, eu acredito que existam pessoas que desejam se iludir pelo simples prazer de se sentir especiais, sem nenhum benefício financeiro ou vantagem direta atrelada. Nesse caso, de fato, a graduação perde qualquer sentido.
Dentro do universo da normalidade, porém, a graduação é, portanto, simplesmente tão importante quanto qualquer outro método que faça parte da estrutura da sua prática e possui o mesmo peso: nada que estamos treinando faz sentido senão enquanto fizermos parte do universo onde essas coisas importam.
[1] Gô é um jogo japonês com peças pretas e brancas, às vezes é chamado de “xadrez japonês”.
[2] Menkyo (免許) era o sistema utilizado por boa parte dos estilos tradicionais de artes marciais anteriores ao século XX. Os membros do estilo recebiam certificações que iam de mokuroku (praticante iniciado) a menkyo kaiden (licença de transmissão total).
[3] Os estilos tradicionais de artes marciais são conhecidos como koryû (古流), o ideograma “流” traz a ideia de fluir, ou seja, transmitir o conhecimento. Logo, os alunos mais avançados se tornariam os responsáveis por transmitir à nova geração os ensinamentos anteriores e manter o fluxo seguindo.
[4] Sobre esse assunto, o sensei Kim Taylor, 7º dan iaidô e 6º dan jôdô no Canadá, fez algumas observações bastante interessantes do ponto de vista de quem está “do lado de dentro” da federação. É possível conferir suas ideias sobre isso em seu facebook.